Qual a diferença entre a Exegese Bíblica Católica e a leitura fundamentalista da bíblia?
A exegese católica não procura se
diferenciar por um método científico
particular. Ela reconhece que um
dos aspectos dos textos bíblicos é o
de ser a obra de autores humanos, que se serviram de suas próprias capacidades
de expressão e meios que a época e o ambiente deles colocavam-lhes à
disposição. Conseqüentemente, ela utiliza
sem subentendidos todos os métodos e
abordagens científicos que permitem melhor apreender o sentido dos textos no
contexto linguístico, literário, sócio-cultural, religioso e histórico deles,
iluminando-os também pelo estudo de suas fontes e levando em conta a
personalidade de cada autor (cf Divino
afflante Spiritu, E.B., 557). Ela contribui ativamente ao desenvolvimento
dos métodos e ao progresso da pesquisa.
A leitura fundamentalista, por sua vez, parte
do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro,
deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por « interpretação literal » ela
entende uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo todo esforço
de compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento histórico e seu
desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do método
histórico-crítico, como de qualquer outro método científico, para a
interpretação da Escritura.
O problema de base dessa leitura
fundamentalista é que recusando de levar em consideração o caráter histórico da
revelação bíblica, ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da
própria Encarnação. O fundamentalismo foge da estreita relação do divino e do
humano no relacionamento com Deus. Ele se recusa em admitir que a Palavra de
Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi redigida, sob a
inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram
limitados.
Por esta razão, ele tende a tratar o
texto bíblico como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito
e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e
uma fraseologia condicionadas por uma ou outra época. Ele não dá nenhuma
atenção às formas literárias e às maneiras humanas de pensar presentes nos
textos bíblicos, muitos dos quais são fruto de uma elaboração que se estendeu
por longos períodos de tempo e leva a marca de situações históricas muito
diversas.
Quando a Pontifícia Comissão Bíblica
afirma reconhecer que um dos
aspectos dos textos bíblicos é o de
ser a obra de autores humanos, que se serviram de suas próprias capacidades de
expressão e meios que a época e o ambiente deles colocavam-lhes à disposição para
escreverem o Texto Sagrado, ela não está negando sua dimensão espiritual, isto
é, o de ser um texto inspirado por Deus.
A Constituição dogmática sobre a revelação
divina, Dei Verbum, afirma claramente
que: As coisas reveladas por Deus,
contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do
Espírito Santo. Têm, portanto,
Deus por autor. Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus
escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades ,
para que, agindo Ele neles e por eles , pusessem por escrito, como verdadeiros
autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria (DV 11).
E
assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser
tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os
livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que
Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras. Por
isso, «toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para
corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito,
experimentado em todas as obras boas» (2Tm. 3,16-17). (Ibidem).
Como,
porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana,
o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos,
deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar
e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras. (DV 12).
O
que a caracteriza, portanto, a exegese católica, é que ela se situa conscientemente na tradição viva da
Igreja, cuja primeira preocupação é
a fidelidade à revelação atestada pela Bíblia. As hermenêuticas modernas
colocaram em destaque, lembremo-nos, a impossibilidade de interpretar um texto
sem partir de uma « pré-compreensão »
de um gênero ou de um outro. A exegese
católica aborda os escritos bíblicos com uma pré-compreensão que une
estreitamente a cultura moderna
científica e a tradição religiosa
proveniente de Israel e da comunidade cristã primitiva. Sua interpretação
encontra-se, assim, em continuidade com o dinamismo de interpretação que se
manifesta no interior da própria Bíblia e que se prolonga em seguida na vida da
Igreja. Ela corresponde à exigência de
afinidade vital entre o intérprete e seu objeto, afinidade que constitui
uma das condições de possibilidade do trabalho exegético.
Toda
pré-compreensão comporta, entretanto, seus perigos. No caso da exegese católica
o risco existe de atribuir a textos bíblicos um sentido que eles não exprimem,
mas que é o fruto de um desenvolvimento ulterior da tradição. A exegese deve evitar este perigo.
Erro que de
alguma forma cometem os que se utilizam da leitura fundamentalista. Ora, (...)
em sua adesão ao princípio do « sola
Scriptura », o fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia da Tradição
guiada pelo Espírito, que se desenvolve autenticamente em ligação com a
Escritura no seio da comunidade de fé. Falta-lhe
entender que o Novo Testamento tomou forma no interior da Igreja cristã e que
ele é Escritura Santa desta Igreja, cuja existência precedeu a composição de
seus textos. Assim, o fundamentalismo é muitas vezes anti-eclesial; ele
considera negligenciáveis os credos, os dogmas e as práticas litúrgicas que se
tornam parte da tradição eclesiástica, como também a função de ensinamento da
própria Igreja. Ele se apresenta como uma forma de interpretação privada, que
não reconhece que a Igreja é fundada sobre a Bíblia e tira sua vida e sua
inspiração das Escrituras (...) O
fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do
pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde
inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substancia
divina dessa mensagem.
Se bem que o
fundamentalismo tenha razão em insistir sobre a inspiração divina da Bíblia, a
inerrância da Palavra de Deus e as outras verdades bíblicas fundamentais, sua
maneira de apresentar essas verdades está enraizada em uma ideologia que não é bíblica, apesar do que dizem seus
representantes. Ela exige uma forte adesão a atitudes doutrinárias rígidas e
impõe, como fonte única de ensinamento a respeito da vida cristã e da salvação,
uma leitura da Bíblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa crítica.
A leitura fundamentalista teve sua
origem na época da Reforma Protestante, com uma preocupação de fidelidade ao
sentido literal da Escritura. Após o Iluminismo, ela se apresentou no
protestantismo como uma proteção contra a exegese liberal. O termo «
fundamentalista » é ligado diretamente ao Congresso
Bíblico Americano realizado em Niagara, Estado de New York, em 1895. Os
exegetas protestantes conservadores definiram nele «cinco pontos de
fundamentalismo»: a inerrância verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu
nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição corporal
quando da segunda vinda de Cristo. Logo que a leitura fundamentalista da Bíblia
se propagou em outras partes do mundo ela fez nascer outras espécies de
leituras, igualmente «literalistas», na Europa, Ásia, Africa e América do Sul.
Esse gênero de leitura encontra cada vez mais adeptos, no decorrer da última
parte do século XX, em grupos religiosos e seitas assim como também entre os católicos. Portanto, não é apenas um
fenômeno protestante, apesar de ter sua origem na Reforma Protestante. É também
uma realidade presente nos meios católicos.
In Corde Iesu et Mariae
Por Bruno Otenio
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Referências Bíbliográficas:
Cap.
III.: Dimensões características da interpretação católica. in: Pontifícia Comissão Bíblica: A Interpretação da Bíblia na Igreja. São
Paulo: Paulinas. 2013. pp. 103-104.
Dei Verbum - Constituição dogmática sobre a
revelação divina.
Introdução:
Leitura Fundamentalista. in: Pontifícia Comissão Bíblica: A Interpretação da Bíblia na Igreja. São
Paulo: Paulinas. 2013. pp. 82-86.
Sites:
http://cpadnews.com.br/conteudo-exclusivo/14766/os-metodos-de-interpretacao-da-biblia-(parte-2).html
http://guiame.com.br/gospel/mundo-cristao/augustus-nicodemus-responde-o-que-e-fundamentalismo-e-liberalismo.html
http://www.unicap.br/tede/tde_arquivos/5/TDE-2015-03-25T150605Z
729/Publico/valtemir_ramos_guimaraes.pdf
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