Teologia e criação parte 2

Imagem e semelhança de Deus - Parte 2


Agora aqui importa trabalharmos o aspecto da imagem do homem em relação à própria imagem de Deus.
Jesus é a imagem do Deus invisível e o primogênito de toda criatura (Cl 1, 15), por isso mesmo, quando fomos criados, Deus nos fez a imagem de seu Filho único, no qual pelo batismo somos constituídos filhos também por meio do próprio Filho. Ora o Catecismo Jovem da Igreja Católica nos ensina que o batismo “liga-nos a Jesus Cristo, insere-nos na Sua morte redentora na cruz, libertando-nos do poder do pecado, e faz-nos ressuscitar com Ele para uma Vida interminável” (Youcat nº 194). Sendo assim já podemos entender qual foi um dos motivos pelo qual o Filho de Deus se encarnou. Se encarnou para nos re-configurarmo-nos à imagem de Deus, isto é, a imagem própria Dele mesmo. Cristo é a imagem do Deus invisível, e nosso modelo perfeito para que também possamos voltar a sermos perfeitos a imagem de Deus. Cristo começa pela imagem para restaurar em nós a semelhança. Por isso podemos afirmar que Cristo vem restaurar em nós o próprio amor que há em nós, para que neste amor voltemos à semelhança com o Criador, com o Pai.
Um grande teólogo e filósofo cristão, C. S. Lewis de forma simples, mas com clareza nos ensina uma verdade irrefutável sobre o que fez Jesus a humanidade:
“... houve um homem que foi de fato como todos os seres humanos deveriam ser: um homem cuja vida criada, herdada de sua mãe, deixou-se assimilar completa e perfeitamente pela vida gerada. Nele, a criatura humana natural foi plenamente assumida pelo divino Filho. Assim, num caso particular, a humanidade chegou, por assim dizer, aonde tinha de chegar: passou à vida de Cristo. E uma vez que toda a nossa dificuldade reside no fato de que, em certo sentido, a vida natural tem de ser “morta”, ele escolheu um caminho terreno marcado pela morte cotidiana de todos os seus desejos humanos – escolheu a pobreza, a incompreensão de sua própria família, a traição de um de seus amigos íntimos, a zombaria e o espancamento nas mãos da polícia e a execução mediante tortura. E então, depois de ser morta – morta, de certa maneira, a cada dia-, a criatura humana que nele havia, por ser unida ao divino Filho, voltou de novo á vida [...] Não precisamos tentar escalar a vida espiritual pela nossa própria força, pois ela já desceu sobre a raça humana  [...] toda a tarefa de nos tornarmos filhos de Deus, de transformarmo-nos de seres criados em seres gerados, de passarmos de uma vida biológica provisória para uma vida “espiritual” eterna – toda essa tarefa já foi feita para nós. Deus se encarregou dela. A humanidade já foi “salva” em principio.”[1]

Cristo por tanto veio restaurar em nós a capacidade de nos relacionarmos de novo com Deus, sendo assim, além de restaurar em nós a imagem de Deus, nos abre novamente ao mundo espiritual, por isso Jesus Cristo é para nós o caminho que nos leva ao Pai.
Joseph Ratzinger em uma de suas obras primas, “Introdução ao Cristianismo”, ao tratar sobre a humanidade de Jesus, acaba por também nos ensinar muito sobre como Cristo em sua encarnação nos abriu a possibilidade para que imitando-o também chegássemos a perfeição humana:
“Em última análise, o ser humano está destinado àquele outro, ao verdadeiro outro, a Deus. Ele está tanto mais em si quanto mais estiver no totalmente outro, em Deus. Isso significa que ele é totalmente ele mesmo quando deixar de estar em si mesmo, quando deixar de fechar-se e de afirmar-se, quando for abertura total em direção a Deus. Ou falando de outra maneira, o ser humano chega a si na medida em que for além de si mesmo. Jesus Cristo, porém, é aquele que foi totalmente além de si mesmo e é por isso que ele é o ser humano que chegou verdadeiramente a si [...] A hominização completa do ser humano pressupõe a hominização de Deus [...] O homem é homem porque ultrapassa infinitamente a si mesmo, e por isso ele é tanto mais homem quanto menos ele fica fechado em si, limitado [...] é mais humano, e até o ser humano por excelência, aquele que é mais ilimitado, que não apenas toca o infinito – o ser infinito” – mas que é um com ele: Jesus Cristo. Nele, o passo da hominização chegou realmente ao seu objetivo”[2].

Ratzinger parece fazer eco ao que C.S. Lewis de forma concisa ensinou sobre nosso fim último: “Para nos tornarmos novas criaturas, temos de perder o que agora chamamos de “nós mesmos”. Temos de sair de nós mesmos e entrar em Cristo”[3].
Santo Irineu também contribui para nossa reflexão: “Quanto ao homem, Deus o modelou com as próprias mãos, isto é, o Filho e o Espírito Santo, [...] e imprimiu na carne modelada sua própria forma, de modo que até o que fosse visível tivesse a forma divina”[4].
Portanto Cristo restaura em nós a imagem de Deus. Mas e a semelhança? Quem nos restituirá tal graça? Ora, é o Espírito Santo. Como diz Santo Irineu, é o Espírito Santo que, sendo um dos braços do Pai, nos restituirá a semelhança de Deus. Enquanto Cristo restaurou em nós a imagem de Deus e a nossa própria no amor, por amor e para o amor e, nos fez novamente “criaturas espirituais”, abertas novamente ao mundo espiritual, a “graça” da restauração de nossa semelhança para com Deus é realizado pelo Espírito Santo que nada mais é do que Deus, com o Pai e o Filho.
O Pe. Raniero Cantalamessa em suas meditações[5] sobre o hino Veni Creator fantasticamente nos ensina como exatamente o Espírito Santo faz de nós semelhantes a Deus. Ele nos ensina que em cada um de nós “existe um caos interior. O nosso caos é o da escuridão que há em nós; o caos dos desejos, dos projetos, dos propósitos, dos lamentos contraditórios e entre si conflitantes”[6]. Este caos é a desordem, são em nós o desequilíbrio, os vícios, o pecado.
O interessante nesta colocação do Pe. Raniero é perceber que o mesmo Espírito que pairava por sobre o caos das águas no início da criação (cf. Gn 1, 2) também paira sobre nós quando clamamos por sua vinda. Ora, tal como o Espírito Santo ordenou o mundo, o macrocosmo no inicio da criação, Ele também fará conosco, ordenará em nós tudo aquilo que está desordenado, ou seja, microcosmo que somos nós, nosso interior, nossa alma, nosso espírito, tudo em nós é ordenado pelo Espírito. Ele mesmo nos ensinará o domínio por sobre nossas próprias paixões, nos ensinará de novo o caminho da ordem espiritual, da ordem natural, da ordem interior e assim agirmos para a ordem exterior. Esta ordem exterior nada mais é do que a harmonia perfeita com toda a criação, que geme em dores de partos esperando a manifestação dos filhos de Deus para libertá-la da escravidão da vaidade, ou seja, na esperança de ser restaurada da corrupção na qual fora submetida Rm (8, 18-22). E não somente para com a natureza, mas também para com os irmãos e com o próprio Deus, tal como o Cristo nos ensina no belíssimo Sermão da Montanha (Mt 5-7).
Santo Ambrósio, depois de se dedicar no ensino sobre o Espírito Santo como criador, por tanto como agente modelador da criação, trata também sobre a ação salvífica do Espírito, isto é, qual a relação do Espírito na economia da salvação. Ambrósio afirma: “O Espírito é o autor da regeneração espiritual, na qual somos criados segundo Deus, para sermos filhos de Deus”[7].
É extasiante poder ver a comunhão plena que há na ação salvífica de Jesus com o Espírito Santo. Ora Jesus também nos refaz a imagem e semelhança de Deus, mas este não age separado do próprio Espírito Santo que por sua vez age silenciosamente, misteriosamente e ativamente com Cristo para a salvação do mundo. Jesus na cruz nos mostra o rosto desfigurado do homem mergulhado no pecado, não o rosto físico do homem, mas seu estado de espírito, seco, chagado, machucado, triste e abatido. O Cristo crucificado deve ser para nós uma visão de conversão. Pois não se encerra ali a história, Ele ressuscita, nos envia o Espírito Santo, pelo qual somos reconduzidos à perfeição e à santidade. Mas lá, do alto mesmo da Cruz, Cristo derramou sobre o mundo o sangue e a água, a eucaristia e o batismo. E como já dissemos acima, é no batismo que somos restaurados e configurados a Cristo e ungidos pelo Espírito.
“Quando entoamos o Veni Creator, dizemos: Vem, Espírito Santo, paira e sopra também no meu caos, infunde luz nas minhas trevas (cf. Sl 18,029), faz de mim um verdadeiro microcosmo, um pequeno mundo, uma coisa bela, harmoniosa, pura, uma nova criação”[8].
Portanto, chegamos a uma conclusão bastante confortante: nós não somos somente imagem e semelhança de Deus por que possuímos a graça do domínio sobre a criação, mas porque possuímos “hoje” Aquele que é o próprio Criador: O Espírito Santo. Ele é quem nos impulsiona a agirmos como o Cristo. É o Espírito Santo quem nos direciona para O Caminho. E o Caminho é Jesus. E seguir este caminho é seguir o caminho do Amor e quem segue por esta via torna-se cada vez mais imagem e semelhança de Deus. E é exatamente isso que nos ensina a primeira Epístola de São João: “Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é Amor [...] aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele. Nisto consiste a perfeição do amor em nós [...] Quanto a nós, amemos, porque ele nos amou primeiro.” (I Jo 4, 7-8. 16. 19).




[1] LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005. pg. 238 – 241.
[2] RAZTINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. 6ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2012. pg. 175
[3] LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005. pg. 296.
[4] Sto. Irineu de Lion. Demonstratio praedicationis apostolicae, nº 11.
[5] CANTALAMESSA, Raniero. Vem, Espírito Criador: Meditações sobre o Veni Creator. São Paulo: Editora Canção Nova, 2014.
[6] Ibidem, pg. 73
[7] Ibidem, pg. 80
[8] Ibidem, pg. 73

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